Marcio Simão de Vasconcellos, Mestre e doutor em Teologia Sistemático-Pastoral (PUC-RJ) e especialista em Ciências da Religião (Faterj), fará parte da Mesa "Mitos, Luz, Sombras e anjos" no dia 26/03, sexta-feira, às 11h, e aceitou nos conceder uma entrevista para que possamos saber um pouco mais da história desses conceitos e nos preparar para a discussão da Mesa.
Em que momento ou história você localiza o início do mito das sombras e das luzes?
Antes de tudo, penso que é preciso criticar uma falsa oposição entre mito e história, oposição esta gestada especialmente graças ao Iluminismo positivista do século XIX e início do século XX que considerou o mito, erroneamente, como sinônimo de mentira. Pois o mito tem sim uma relação com a história, não como sua narrativa ou descrição, mas como sua interpretação. Todo mito tem uma preocupação histórica porque nasce dessa história que quer interpretar (CROATTO, 2004, p. 304).
Sobre o mito das sombras e das luzes, a primeira narrativa que vem à mente é o conhecido Mito da Caverna, de Platão. Certamente esse mito, em sua formulação platônica, tem influenciado direta ou indiretamente toda a cultura no Ocidente. Contudo, há outros mitos gerados em culturas distintas – algumas anteriores ao período clássico da Grécia e outras posteriores, mas que não tiveram contato com a cultura grega – que apresentam leituras sobre a sombra e a luz vinculadas aos seus mitos de criação e à concepção antropológica que apresentam. Por exemplo, o relato sobre o “Senhor das criaturas” (Demiurgo Prayâpati), do texto védico Rig Veda, apresenta o mundo criado (tanto dos seres humanos como das outras divindades) como uma sombra desse único Deus a quem se deve adorar. Curiosamente, a sombra aqui não é lida em tons platônicos, pois a criação feita por Prayâpati é boa. Mesmo assim, aponta para uma relação interessante entre sombra e luz que transparece neste mito. Outras culturas, como a babilônica, a persa, a maia, a asteca etc., também apresentam elementos relacionados ao mito das sombras e das luzes em suas construções literárias e religiosas.
Ainda para citar outro exemplo, na cosmogonia quiche (maia), a criação do ser humano – feito para dar reconhecimento ao Criador, ao Formador e aos Progenitores (todos participantes ativos do processo de criação do mundo) – é elaborada na escuridão da noite e realizada no amanhecer, quando a sombra da noite seria substituída pela luz matinal. “Quando amanhecesse devia existir o homem”, afirmam os criadores, “Não haverá glória nem grandeza em nossa criação e formação até que exista a criatura humana, o homem formado” (CROATTO, 2004, p. 456). Interessante perceber que nesse relato o ser humano só é plenamente criado com a chegada da luz da manhã; as tentativas anteriores, feitas na escuridão, geram semi-homens, incapazes do diálogo com as divindades que os criaram.
Discorra um pouco sobre a figura dos anjos na religiosidade e na literatura.
A figura dos anjos se apresenta com muita frequência em textos religiosos, na maior parte dos casos servindo como uma espécie de mediador entre a divindade e os seres humanos. Em outros casos, certos anjos são representados como a antítese da divindade ou como o adversário do ser humano, ápice desta criação. Na literatura hebraica, por exemplo, a figura de Satanás é compreendida como adversário, isto é, um ser celestial que se coloca em oposição à vida humana. Apenas posteriormente, já na teologia cristã, que esse personagem será associado à figura do diabo ou de Lúcifer como inimigo de Deus e acusador dos seres humanos.
No período inter-bíblico (entre a escrita dos dois Testamentos que compõem a Bíblia cristã), a figura do anjo ganhou maior importância, pois, com o encontro com culturas diversas (especialmente a babilônica e a persa), a “ideia de Deus desandou para a transcendência radical. Deus se torna mais transcendental e, por isso mesmo, mais universal” (TILLICH, 2004, p. 32). Com isso, tornou-se necessária a existência de mediadores entre Deus (Iahweh) e os seres humanos; os “anjos, deuses e deusas deteriorados do paganismo” (TILLICH, 2004, p. 32) tornam-se mais presentes na experiência religiosa.
Na literatura apócrifa vinculada à teologia judaico-cristã, os anjos são retratados como a origem do mal e da violência no mundo, simbolizada pelos gigantes (Nephilim) da antiguidade. O livro de Enoque relê o texto de Gênesis 6 que afirma: “[...] vendo os filhos de Deus [anjos, na concepção do livro] que as filhas dos homens eram formosas, tomara para si mulheres, as que, entre todas, mais lhes agradaram. [...] Ora, naquele havia gigantes [nephilim] na terra”. Para o livro de Enoque, este acontecimento representou uma segunda queda de anjos (a primeira seria a dos anjos rebeldes que foram aprisionados na terra juntamente com Lúcifer). Segundo a narrativa mítica de Enoque, os gigantes são fruto da união sexual entre anjos e seres humanos, o que traz caos ao mundo.
No cristianismo, a junção entre a fé cristã e a filosofia helênica, ocorrida especialmente no período da Patrística (século II-V d.C.), reinterpretou os anjos citados nas Escrituras a partir da ótica grega. Ainda assim, foi apenas no Renascimento que os anjos foram retratados como crianças com asas. Antes disso, especialmente na Idade Média, os anjos eram representados como seres jovens, mas de uma sexualidade sutil (quase assexuados) e vestidos. Já no imaginário cristão, os anjos eram imaginados como seres que geravam terror em que os via, baseando-se nos relatos bíblicos em que normalmente a primeira frase de um anjo a um ser humano é “não tenha medo”. Na Renascença haverá um processo de “cristianização” dos mitos gregos e a figura alada, presente em mitos helênicos, se transfigurará em interpretações religiosas. O uso da figura de Eros é um exemplo. Há quadros em que ele é retratado a partir da mitologia e outros em que ele é retratado como um anjo do arcabouço cristão.
Na literatura de fantasia e ficção, os anjos ainda se apresentam ligados às suas concepções religiosas, obviamente com certas liberdades criativas inerentes a este gênero literário. É assim, por exemplo, que ocorre com a forma com que J. R. R. Tolkien, autor da trilogia O Senhor dos Anéis e de toda uma mitologia própria referente à Terra Média, descreve sua mitologia de criação. Em O Silmarillion, Tolkien descreve a criação do mundo da seguinte forma:
Havia Eru, o Único, que em Arda se chama Ilúvatar; ele fez primeiro os Ainur, os Sagrados, que eram filhos do seu pensamento e que estiveram com ele antes de alguma coisa mais ser feita. E falava-lhes, propondo-lhes temas de música; e eles cantavam perante ele, que ficava satisfeito. [...] E veio a acontecer que Ilúvatar reuniu todos os Ainur e lhes comunicou um tema portentoso, mostrando-lhes coisas maiores e mais maravilhosas do que até então lhes revelara; e a glória do seu começo e o esplendor do seu fim de tal modo maravilharam os Auinur que eles se curvaram diante de Ilúvatar e ficaram silenciosos. (TOLKIEN, 1989, p. 19-20)
Na narrativa que se segue, bastante inspirada no mito da criação em Gênesis, Ilúvatar convida os Ainur a cantarem, juntos, em harmonia, uma grande música. À medida em que a música é ouvida, o vazio começa a ser preenchido com as coisas criadas. Mas Melkor, um dos Ainur, decide cantar uma melodia própria, em desarmonia com o restante das canções para, com ela, desafiar o próprio Ilúvatar. Essa é a forma com que Tolkien relê o mito da queda dos anjos, presente na teologia cristã, em sua própria narrativa.
Anjos como protetores ou guias dos seres criados também aparecem na Trilogia Cósmica do autor irlandês C. S. Lewis. Nesta trilogia, o Oyarsa representa um servo de Maleldil (Deus) que governa um determinado planeta, sendo responsável por sua existência física (órbita, temperatura, coesão interna etc.) bem como por seus habitantes. Cada planeta possui seu próprio Oyarsa, e por isso, eles podem comunicar-se entre si; exceto Tulcandra (a Terra), o planeta silencioso que tornou-se assim devido à rebelião do seu Oyarsa. Existe, aqui, uma clara alusão à história cristã da rebelião de Lúcifer.
Também vale citar inúmeras releituras ficcionais do Apocalipse e da literatura apocalíptica que utilizam a figura dos anjos para comunicar julgamento ou ira divina, bem como batalhas cósmicas entre o bem e o mal.
Referências:
CROATTO, José Severino. As linguagens da experiência religiosa. Uma introdução à fenomenologia da religião. 2ª edição. São Paulo: Paulinas, 2004.
TILLICH, Paul. História do pensamento cristão. 3ª edição. São Paulo: ASTE, 2004.
TOLKIEN, J. R. R.. O Silmarillion. Portugal: Europa-América, 1989.
Perguntas elaboradas por: Dora Lutz e Karen Acioly